III Domingo do Tempo Comum (Ano A/2020)

III Domingo do Tempo Comum (Ano A/2020)

Para quem estuda exegese, aproximar-se de um texto bíblico pode significar colocar-se diante de um emaranhado de aspetos morfológicos, análises sintáticas, leituras sincrónicas ou diacrónicas, questões de historicidade e afins. Ao olhar a passagem do evangelho deste Domingo, salta à vista a fórmula de cumprimento pela qual é introduzida no texto de Mateus uma citação de Isaías. Este nexo intertextual – e, de algum modo, o fenómeno da intertextualidade – permite-nos compreender como, ao longo da história dos textos bíblicos, a própria palavra é relida, colocada num contexto novo, enriquecida de sentido e significado, umas vezes na continuidade com a sua história, outras portando novidade, cumprindo-se de um modo não de todo evidente. Segundo esta perspetiva, a Escritura faz já exegese de si mesma e, neste processo, a palavra humana torna-se portadora da palavra e da revelação de Deus, em vista da sua plenitude.

O nexo intertextual que encontramos no evangelho refere-se ao início do ministério de Jesus na Galileia, anunciado pelo evangelista como cumprimento de uma passagem da profecia de Isaías, que a primeira leitura apresentava no seu contexto imediato. O foco da liturgia da Palavra sobre esta região onde Jesus inicia e vive o seu ministério chama a atenção sobre a Galileia, território de confim, lugar de fronteira não só geográfica, mas também cultural e religiosa. Se quiserem, ao jeito do Papa Francisco, uma periferia: terra fértil, mas sempre disputada; terra próspera, atravessada pelas caravanas de comércio, mas por isso mesmo conquistada e reconquistada uma e outra vez. Região onde, ao tempo de Jesus, crescia a presença de comunidades judaicas, mas também na qual poucos quilómetros de distância podiam significar uma abrupta mudança no cenário humano e espiritual. É este o contexto que Jesus escolhe para anunciar o Reino para sempre próximo e para apelar à conversão – num voltar(-se) para Deus e aprender a escolher os critérios e a mentalidade nova do evangelho. Hoje, também nos situamos num espaço vital de confim, um espaço de fronteira com outras leituras da realidade, com outras formas de olhar o mundo, o ser humano e o próprio Deus. Foi nesta realidade periférica que também nós escutámos – segui-Me e farei de vós pescadores de homens – e é a esta realidade que somos enviados com a mesma missão de anunciar, reconciliar e curar de Jesus. Ceder à tentação de, diante de uma realidade complexa, nos dividirmos e fragmentarmos em fações ideológicas não parece ser uma solução, como não o era na comunidade de Corinto, à qual escreve Paulo.

Às vezes, somos nós próprios esta realidade, devastada e reconstruída, onde se delimitam confins entre fé e incredulidade, claridade e sombra, entre pecado e graça. Nesta realidade complexa que somos, entre a Palavra e a memória constroem-se pontes, criam-se nexos (não diria intertextuais, mas talvez intertemporais) pelos quais a nossa história com o Senhor, com as decisões concretas e definitivas que tomámos, se torna sustento do presente e promessa de futuro. Peçamos, então ao Senhor, a graça de nos nutrirmos cada vez mais da sua Palavra e do seu Pão, para que, na realidade em que nos é dado viver, espaço de confins e periferias humanas e espirituais, continue a ressoar a sua voz e a ser anunciado seu evangelho.

(Pe. Alberto Martins)